Ontem, de manhã, passei pelo centro de emprego e pela segurança social e partilhei os espaços onde as estatísticas ganham faces e muitos sonhos ficam congelados. Faz hoje um ano que entrei, pela primeira vez, num centro de emprego e, com um número na mão, esperei horas para iniciar o processo que oficialmente me colocava na percentagem dos desempregados (quantas décimas percentuais significa um desempregado? Deve ser um número muito pequeno. Será esse o valor de uma pessoa?). Atirado iniquamente para uma situação assim, mas não abandonado pelos amigos e, principalmente pela família, compreendi o que é sentir-se dispensado e excluído; motivado por muitos (muitos mais dos que "até entendem" as razões para o meu saneamento), reagi à vontade de baixar os braços e ao conformismo derrotado, voltei a estudar, continuei a procurar e mantive a esperança. Realmente tudo é benção e eu ergo, todos os dias, os braços ao céu porque Deus tem sido mesmo muito meu amigo. Sim, é uma expressão de criança, mas só assim se acolhe e se confia, no meio da dor de uma ferida que nunca cicatrizará.
Depois desta manhã, à tarde, estive a arrumar caixas de livros (sim já não cabem na minha biblioteca) de liturgia, catequese, sacramentologia e alguns de espiritualidade mais específica. Com eles arrumei ordenadamente as minha homilias desde 1996 e alguns guiões de celebrações que fui realizando. Podia deitar muitas destas coisas fora, mas não consigo porque são parte de mim, são constitutivos da minha história, são eu mesmo. Mesmo que um dia perca a memória, um pouco ou até muito de mim estão naquelas folhas A5 manuscritas, sem valor literário, teológico ou histórico, que me marcaram e marcaram muitas pessoas.
Depois disso, fui até à praia do Furadouro ter com uma amiga com quem falo muitas vezes informaticamente, mas que há muito não conversava face a face. E como é diferente dialogar assim. Foi uma conversa de dois amigos, ao sabor da brisa suave da beira mar, que, desde que se conheceram, nunca mais leram os dias com os olhos de antigamente. E assim, marcados profundamente pelo passado que nos juntou, cultivamos uma amizade mutuamente apoiada no presente e comprometida com o desenrolar futuro da vida.
Falei destas duas coisas da minha tarde de ontem porque elas nos revelam como o nosso eu, o nosso ser mais íntimo em nós, se alimenta e manifesta: pelo corpo e pela memória (sei que não é só assim nem só por aí, mas isso são outras conversas). Não chega o telemóvel ou o messenger ou até uma carta ou mail. Realmente uma relação faz-se pelo rosto diante do outro rosto que se me impõe com toda a sua força ética; uma relação só se realiza pela observação ao vivo e em directo de tudo o que o corpo do outro expressa e é; eu só me entendo, conheço e avalio por referência à relação corporal com o outro. Finalmente, a memória, não na sua fiabilidade e correcta interpretação dos factos (que sabemos que é muito enganadora), mas no que ela traz à superfície dos dias e ao despoletar de sentimentos/pensamentos que nos ajudam a compreender e a entender o passado, os outros e aquilo que sou e, até, aquilo que valho. Na verdade, é neste corpo que percorre o tempo (que não passa e está sempre presente e por isso, na verdade, as feridas nunca cicatrizam) que se ama, que se acolhe o outro e com ele a salvação.
terça-feira, 1 de setembro de 2009
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