terça-feira, 27 de abril de 2010

A Propósito de Uma Nuvem

Na quinta-feira passada, participei numa iniciativa do Serviço de Humanização do Hospital de S. João, subordinada ao tema A Morte e o Morrer no Hospital. O meu amigo João Pedro convidou-me a ler uns poemas do Daniel Faria que intercalavam, com momentos musicais a cargo da Escola de Artes da Universidade Católica, as diferentes intervenções que foram sendo feitas. Infelizmente, não pude ficar até ao fim porque tinha uma aula para dar às 12h. Mas escutei a abertura dos trabalhos pelo presidente do Serviço de Humanização, a intervenção sincera do director clínico do hospital (que sublinhou a dificuldade dos médicos em geral em lidarem com a morte) e a magnifica reflexão sobre aquele tema do também meu amigo José Nuno, padre e capelão do hospital.
Gostaria de aqui relacionar o apelo que o padre Nuno fez para que a medicina se libertasse do paradigma tecnológico para se tornar no que é na sua essência: humana e humanizadora. Uma medicina que se cinja às questões técnicas, à máquina, à eficiência acabará por abordar o doente, o moribundo, o cadáver como uma peça de uma engrenagem e não como um ser com uma história, um contexto social, com um valor único e original, enfim como uma pessoa.
Escutava, então, o meu amigo (que falou com muita maior densidade, justificação e beleza do que expus) e pensava na nuvem de cinzas que durante dias paralisou vários aeroportos por toda a Europa. Pensamos nós que a tecnologia nos tornou mais livres, mais poderosos e com maior qualidade de vida que os nossos antepassados recentes. Não duvido que facilitou muita coisa, que melhorou muitos serviços (como por exemplo a saúde), que permite infindáveis possibilidades. Mas a realidade, é que se a deixarmos tomar conta de tudo desumanizamo-nos, fechamo-nos, passamos a viver para a eficácia e as estatísticas, esquecemos o que nos distingue de tudo o que nos rodeia, deixamos de ser médicos, professores, pais, etc e passamos a ser técnicos... E basta uma antiquíssima forma de a natureza se manifestar para nos mostrar como, afinal, a tecnologia nos prende nos aeroportos, nos faz perder milhões, nos faz sentir impotentes e torna inúteis todas as possibilidades técnicas que temos. Aliás, sempre que saio de casa ou procuro alguma coisa irrito-me com a quantidade de máquinas que me pesam, com os aparelhos para tanta coisa e que tanto espaço mental e material ocupam, com os inúmeros cartões, códigos e afins que ocupam as carteiras e a memória quando ainda, há trinta anos atrás ia para a escola com uma simples pasta de couro às costas, sem dinheiro e desconectado do resto da família e do mundo.
Não estou a estigmatizar nada, apenas a afirmar que não acredito que sejamos mais livres nem mais desenvolvidos humanamente que os meus avós. Aliás, tenho a certeza de que estamos muito mais vulneráveis do que eles.

Porque é tão bonito, tão humano e tão pouco tecnológico aqui deixo um dos poemas do meu amigo Daniel lidos na quinta-feira:

A noite veloz bate a lâmpada azul contra as casas
A luz que estilhaça
A sirene. A noite bate na luz da lâmpada
Quebrando-a

Soubesse eu a canção que cantam os mortos para não adormecer
Soubesse eu soldar o silêncio

Existe sempre alguém que passa e bate na noite
A zumbidora lâmpada azul para não adormecer
Na morte

Soubesse eu estilhaçar a noite. Soubesse eu morrer
Iluminando

2 comentários:

Unknown disse...

Não posso deixar de enfatizar isto:

O Daniel Faria foi, quanto a mim, um dos maiores talentos da poesia portuguesa contemporânea. Partiu cedo de mais e isso, com a inerente limitação ao tamanho da sua obra, talvez não permita um reconhecimento generalizado. Mas no fundo quem perdeu foi a nossa poesia e a nosso cultura, ou seja, todos nós.

Possivelmente teria descoberto a poesia do Daniel sozinho, mas como a nossa vida só se escreve uma vez, aqui fica o meu obrigado a quem mo deu a conhecer.

Abraço,

Fernando Mota disse...

Caro amigo, a herança do Daniel é universal, mas ter sido seu mediador para ti enche-me de contentamento. Um forte abraço.