quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O Tempo

Além dos encontros familiares e das celebrações religiosas, estas férias de Natal caracterizam-se por muito trabalho individual. Finalmente comecei a escrever a minha última unidade lectiva para os manuais de EMRC, organizo apontamentos para começar a estudar para os exames da faculdade e planifico o meu segundo período no colégio. Ontem tive reunião, no Porto, toda a manhã, com a equipa de elaboração dos manuais e à tarde regressei aos meus apontamentos sobre a Igreja, tema da referida unidade lectiva.

Neste último dia do ano, gostaria de deixar aqui uma pequena reflexão sobre o tempo. Os gregos tinham duas formas de falar de tempo: cronos e kairós. Cronos, na mitologia grega, é o tempo e a divindade que mutila o pai e devora os filhos, desligando-se do passado e dizendo não ao futuro, respectivamente. Assim, cronos é o tempo do momento, fragmentado, sem sentido, sem liberdade, sem história. O cronos é como esses não-lugares que pululam nas cidades: o átrio da estação por onde todos passam, mas que nada é como lugar de encontro, de urbanidade, de relações; as salas de espera de uma qualquer repartição de finanças ou loja do cidadão; essas praças centrais por onde todos passam mas ninguém se vê e permanece. Cronos é o tempo da solidão, do vazio, do isolamento na história e no mundo, onde nada acontece, onde tudo passa inexoravelmente. O passado não existe nem se lê nem se valoriza e o futuro é o que for, nada se aforra, nada se prepara, nada se espera. Por isso, é que o fim-de-ano me incomoda. Primeiro, porque parece que o Natal já era (e não, amanha faz oito dias que aconteceu e para os crentes ainda é dia de Natal) e depois e por isso, há que arranjar depressa outra festa, outra celebração porque não aguentamos o tédio que é viver e a percepção de que tudo passa tão depressa. Então lá surge este dia, como outros ou como o fim-de-semana, em que há que voltar a subir as sensações, as experiências, os êxtases para que as emoções à flor da pele nos impeçam de pensar os dias, olhar o tempo e procurar o sentido de um tempo que nos parece trazer presos na sua voracidade e circularidade.
O kairós é o tempo como momento oportuno, oportunidade, o tempo aberto à surpresa e ao mistério do outro em toda a sua originalidade e dramaticidade. É o tempo de Deus e do Homem, o tempo do Natal e da Páscoa, o tempo em que se assume o que se foi, é e perspectivasse e constrói-se o que se será. O kairós é o momento de fazer o amanhã, aprendendo com o ontem. É o tempo como local de salvação, isto é com sentido e não à deriva. É o tempo não como prisão, mas como oportunidade a ir mais além.
Assim, entro no novo ano com uma tranquilidade absoluta e uma esperança resoluta no futuro. O que será 2010? Uma oportunidade à vida e ao outro. O resto serão acontecimentos com que tentarei ler e significar a história. Como vou passar o ano? Com aqueles que mais me são significativos porque o tempo é lugar de encontro e de partilha. E não algo que se consome e me consome. Deixa marcas? Ainda bem, são sinal de vivi e vivo a vida...
Um bom 2010.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Sagrada Família de Jesus, Maria e José

Que pode a família de Nazaré dizer às famílias de hoje? Que sinais orientadores encontramos neste Evangelho, conhecido pela perca e encontro do menino Jesus no templo de Jerusalém?
Um grande sinal: um filho é sempre desconcertante. Para os pais e para o mundo. Sei que o texto é uma construção de Lucas que já nos apresenta Jesus como sinal de contradição entre o poder religioso e o poder paternal e prenúncio da relativização que Jesus fará da família carnal, diante da possibilidade da abertura à família humana (Quem são a minha mãe e os meus irmãos? Aqueles que escutam a Palavra de Deus, dirá Jesus). Mas, penso poder dizer que Jesus é o iluminador da família cristã actual, na medida que consiga fazer passar no seu seio dois valores fundamentais: a liberdade e o saber viver como irmãos.
A liberdade que nos vem de Jesus é a liberdade que não se deixa manietar pela incompreensão e o fechamento à novidade das estruturas de poder que nos rodeiam socialmente. A família também pode ser uma ignóbil e injusta estrutura de poder se servir de abrigo a violências, a injustiças, a descriminações, a manipulações psicológicas, à perpetuação de estratificações sociais e económicas. Por vezes, na justa ânsia de defender a família temos tendência em ocultar dramas e prisões que ela muitas vezes legitima. Na família inspirada pela família de Jesus a liberdade de quem sabe que existem valores maiores que a carne e o sangue leva a que vejamos todo o outro como irmão e, por isso, aquela família será sempre um espaço de liberdade e de encontro voluntário, onde todas as diferenças têm lugar, tal como (deveria ser) a Igreja de Cristo.
O caminho dos filhos nem sempre coincide com o dos sonhos dos pais. Nem com o que a sociedade tinha estipulado. Assim, também o de Jesus. E isso, hoje, tal como então, provoca incompreensão ("Mas eles não entenderam as palavra que Jesus lhes disse"). A questão está em saber como agir com tal incompreensão. E aí Maria e José dão-nos mais uma lição: diante do mistério maior que temos entre mãos (um filho) só temos que o acompanhar a crescer, transmitir serenamente o que acreditamos e deixar que cresça em autonomia pessoal, intelectual e espiritual. E que cresça com e nunca contra.
Assim, a partir do evangelho de hoje, a família cristã deve ser um espaço que promove a autonomia adulta, a liberdade responsável, o compromisso social pelo outro e a abertura à novidade misteriosa que é cada ser humano. Só se assim for, vale a pena lutar pela tão referida família.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Mãe

Por feliz coincidência, este ano, o dia de aniversário da minha mãe calha neste domingo da Sagrada Família (amanhã colocarei aqui o meu comentário ao Evangelho) o que me provoca imediatamente algumas reflexões, que aqui deixo com todo o meu ser.
A minha mãe é a nossa família: por ela existimos, com ela crescemos, graças a ela ganhamos vigor, educação, um curso, um lugar na sociedade; à sua volta nos reunimos, é ela, por ela e com ela que nos juntamos, enfim se somos família foi e é porque ela nunca nos abandonou, mesmo quando não nos compreendia, mesmo quando a fazíamos sofrer, mesmo quando contrariávamos a sua vontade e os seus sonhos. Nós não somos uma sagrada família, longe disso, mas Ela é sagrada para a nossa família.
No Evangelho de hoje, Maria vira-se aflita, triste e até zangada para o seu filho fugidio e pergunta-lhe: "Filho, porque procedeste assim connosco?" A nossa mãe quantas vezes o disse a cada um de nós? E disse-o na primeira pessoa do singular porque nos ergueu só e corajosamente singular. Quantas vezes nos vem à memória as muitas vezes que a fizemos chorar solitariamente e sofrer com uma dignidade típica das mães? E melhor: quantas vezes a vimos e a vemos a reerguer-se quando já ninguém esperava e confiava na sua força, na sua capacidade de erguer a cabeça diante da sociedade, quando já ninguém suspeitava que tivesse lucidez e vontade para voltar a começar. Neste último ano, observamos como ela consegue viver diariamente sozinha, pela primeira vez em quase 40 anos, e, surpresa, consegue-o com uma garra, uma vontade e uma profunda confiança em si e na nossa companhia, reagindo vigorosamente às contrariedades.
E nesta solidão percebo o Evangelho quando diz que Maria "guardava todos estes acontecimentos no seu coração": assim vejo a minha mãe, no entardecer dos dias, por vezes suspirando por um mero telefonema dos filhos, a recordar (trazer ao coração) como era cada um de nós ao seu colo, como reagia cada um de nós ao seu chamar, como tudo começou, como nos criou a todos, trazendo à memória centenas de histórias em que partilhamos protagonismo com ela e como chegou agora a um tempo em que parece que é ela que está dependente dos filhos. Mas não. Cada dia que passa, mais te queremos agarrar, proteger, fazer parar o passar inexorável do tempo porque sentimos e sabemos que somos nós que não sabemos viver sem ti. Não te esqueças, quando nasci já tu vivias há muito. E vivias sem nenhum de nós. Nós é que não sabemos viver sem uma mãe. Nunca assim vivemos. E, quando um dia aprendermos a viver sem ti, foi sempre graças a tudo o que nos ensinaste.
Por tudo isto, estás e estarás sempre de parabéns.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Dia de Natal 2009


No coração do mundo como um fogo. No íntimo de cada um de nós em favor de todos. Um Significativo dia de Natal para todos.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Natal 2009

Eis chegada a hora de Maria e de José. Em obediência à vontade imperial de ver inscritos todos os súbitos, Maria e José vão proporcionar todas as condições possíveis para que Deus inscreve-se para sempre a sua decisiva marca na história. Quando o imperador espalhava a sua pax romana assente na força, no domínio, no poder, eis que Deus sorrateiramente propõe, por Maria e José, a sua forma de construir a paz. Na obscuridade da noite judia, longe das cidades onde as luzes humanas dispensam a luz interior e abafam convenientemente todos incómodos choros infantis, Deus aproximou-se dos pobres e cercou-os de luz ("O Anjo do Senhor aproximou-se dos pastores e a glória do Senhor cercou-os de luz"), graças a Maria e José. Graças a estes dois loucos de amor e de fé um pelo outro eis que Deus nos diz como andamos enganados: não, não sou um Senhor, mas um menino; não, não quero temor, mas carinho; não, não me ergo sobre o Homem, mas dele necessito para me tornar realidade vivente no mundo; não, não nego a humanidade, mas sou humanidade e o caminho para Deus é a humanidade.
Nesta noite, não estamos de esperanças, somos a esperança porque Deus oferece ao Homem o único caminho para a paz, para a luz, para uma nova história com sentido. Só depende de nós, de cada um de nós que Ele nasça hoje e sempre à nossa mesa, no nosso lar, no nosso trabalho, na nossa terra, na nossa paróquia, na nossa oração, na nossa vida. Este é o meu lema para esta noite: Ele precisa de ti para nascer Hoje. Dores? Sacrifícios? Lágrimas? Stress? Tudo isto são dores de parto que antecedem a alegria de erguer nos braços a razão e o sentido das nossa decisões, dos nossos passos, do nosso amor, do nosso viver.
Um santo Natal para todos os que daqui se abeiram. Deixem-se cercar e cerquem os outros daquela Luz.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Gestos

Finalmente me abeiro desta janela sobre os dias. Foram dez intensos dias que apanharam toda a terceira semana de advento (Gestos) e o início desta quarta semana de advento que amanhã, pela meia-noite, se encerrará com a celebração do nascimento de Jesus. Foram dias carregados de reuniões de avaliação (bons resultados os dos meus alunos. A maioria está de parabéns à minha disciplina e às outras) e, principalmente de gestos manifestadores daquela presença tão viva como tão discreta do amor encarnado do nosso Deus, Jesus. É da enumeração desses gestos que caíram tão fundo e tão fertilmente na minha vida que constará este post.
Na segunda-feira, dia catorze de Dezembro, começamos as orações de advento para os alunos do segundo, terceiro ciclos e secundário na capela de colégio. Sobre o lema Estar de Esperanças, cada turma, na hora lectiva de EMRC, sentou-se no chão, leu a Palavra de Deus, rezou com Santo Anselmo e S. Tomás de Aquino e reflectiu sobre o tesouro que trazem em si, para salvação do mundo. Foram momentos emocionantes, íntimos e reveladores que as novas gerações não estão tão insensíveis às vozes do espírito (sempre o soube, o disse e assim agi). Foram os seus gestos comprometidos que me encheram de esperança. Obrigado alunos de EMRC.
Na terça-feira seguinte não esqueço o gesto do aluno Luís Costa, que faz parte do grupo que prepara no colégio o encontro ibérico de Taizé, que me deu generosamente e mal me conhecendo, a ouvir (ainda não parei, desde então) o novo cd dos Muse, The Resistance, de que brevemente aqui terei que falar. Foi um gesto gratuito que me encheu de admiração. Obrigado Luís.
Na quarta-feira vivi esse momento anual inesquecível e carregado de história(s) que é a ceia de natal dos estagiários de Santo Tirso, presidida por essa figura inigualável (um pai para mim) que é o Padre Celestino Ramos. Mas essa noite ficará marcada para sempre pelas palavras que o meu amigo padre José Nuno, dedicado e magnífico capelão do hospital de S. João, me presenteou num livro em que faz o seu testemunho sacerdotal. Escreveu ele: Fernando Mota, a vida muda-nos, mas o essencial permanece. Não consigo dizer muito mais, apenas que este gesto de comunhão me encheu de grato orgulho por partilhar, com tão grande fé e ministério, o essencial. Obrigado Nuno.
Na quinta-feira, como sempre neste primeiro período, pelas 8,10h lá me dirigi para a capela do colégio para rezar as Laudes com os alunos que assim o desejem (são sempre mais de duas dezenas deles). Para minha surpresa, tinham organizado o espaço e a oração de maneira diferente, significando assim as nossas últimas Laudes em conjunto de 2009. Tudo por sua livre iniciativa. Devia-lhes ter aberto o meu coração e agradecer-lhes o serem meus companheiros de caminho. Não consegui, mas daqui lhes digo: esse vosso gesto de fidelidade e compromisso rejuvenesce a minha resposta diária ao Pai. Obrigado companheiros de oração.
Ainda nesse dia, o meu grande amigo José Rui ofereceu-me um lindíssimo presépio e um fortíssimo abraço tão sentidos que só fui capaz de suster as lágrimas porque este gesto de amizade profunda me encheu de um sentimento de gratidão tão grande como de tão consciente indignidade da minha parte por ser alvo de tanto. Obrigado José.
Na sexta celebramos a Eucaristia com os alunos do segundo ciclo: simples, mas participado; ritual, mas significativo; uma aposta ganha pelo entusiasmo criado em todos. Ainda na sexta e no sábado, por entre reuniões de avaliação, foi-se solidificando um sentimento de que falarei daqui a pouco.
No domingo, a minha mãe convidou-me para almoçar e de tarde fomos, com os meus tios Luís e Té, à Casa da Música ver o concerto de Natal da Orquestra Barroca e do Coro da Casa da Música que interpretaram temas de Purcell e o Dixit de Haedel. Foram mútuos gestos de carinho familiar que me enchem de segurança e felicidade. Obrigado a todos.
Ontem, fui o debutante da ceia de Natal do Colégio. Ao longo do dia fui sendo presenteado por colegas que vencendo a minha timidez e o desconhecimento de quem sou, sem nada perguntarem e nada esperarem, me acolheram como um com eles. E esse foi o grande gesto que fui sentindo ao longo destes dias e que ontem se ergueu festivamente, na referida ceia: ser acolhido. Quem não gosta de ser acolhido? Reconhecido? Reabilitado? Foram palavras, sorrisos, gestos, pequenas lembranças, trabalho, alimento e bebida partilhados que me encheram de uma vontade tão indomável como inexprimível de os abraçar a todos e a cada um com um pobre, mas sentido obrigado. Só quem já esteve por terra compreenderá o valor de uma mão estendida...
Caro leitor, se aguentou heroicamente até aqui, compreenderá facilmente donde me vem a confiança tão enraizada de que o Senhor vem todos os dias pelos gestos humanos dos outros. Neste final de advento presenteado por tantos e tão diferentes só posso erguer os braços para o Pai e balbuciar-lhe: Tudo é dom teu.

domingo, 20 de dezembro de 2009

4ª Semana de Advento: Ao Encontro

Neste domingo contemplamos duas mulheres de esperanças: Isabel e Maria, mas Maria é o protótipo do advento cristão. Para o perceber coloquemos estas duas mães em paralelo: uma habita uma cidade de Judá, perto da capital e do templo, a outra habita numa cidade da Galileia, mais perto dos gentios; a gravidez de uma é anunciada no templo a Zacarias, o anúncio, a Maria, é feito directamente à mãe, ainda em Nazaré; uma fica grávida e permanece recolhida em sua casa, enquanto Maria coloca-se entusiasmada e rapidamente a caminho da casa de Isabel, como quem anuncia uma grande notícia que pede generosidade. Isto é, Maria já age como um discípulo, já age como o verdadeiro discípulo de Jesus (anuncia e serve) e, por isso, será bendita porque acreditou em tudo o que lhe foi dito da parte do Senhor, diz-lhe Isabel. Aqui se encontram as atitudes básicas do advento cristão: acreditar na Palavra, esperar no Senhor e sair ao encontro do outro. É uma fé e uma esperança activas, desinstaladoras, não rotineiras, nem individualistas, nem inconsistentes, mas companheiras do Homem concreto de hoje.
Nesta última semana de advento, tal como a grávida prepara, ansiosa e e entusiasmada, tudo para o primeiro encontro com o seu filho, nós somos chamados a ir ao encontro dos presépios vivos e actuais das nossas terras, aldeias, cidades, empresas, escolas, famílias, etc. A ir ao encontro do outro, que também é o que partilha a mesa da consoada connosco. E vamos para seguir o exemplo de Maria: cheia de Cristo, grávida de dias, com todos os riscos que isso implicava, bem como ir para a montanha, ela parte ao encontro do irmão e lá chegada saúda e louva a Deus. Que trajectos teremos esta semana? Caminharemos para onde? Por onde se lançarão nossos passos? E lá chegados saudaremos, abençoaremos, louvaremos e contagiaremos todos de alegria?
Estamos grávidos de Jesus. Somos seus portadores. Estamos a caminho do outro. Com ele nos sentaremos à mesa. Nascerá ele dos nossos gestos, palavras e celebrações? Como saberemos? Se saltarem à nossa volta de alegria, como João, no seio de sua mãe. Contagiemos de vida o mundo das trevas... Mas contagiemos, não con anátemas, mas com saudações abençoadamente proféticas.

domingo, 13 de dezembro de 2009

3ª Semana de Advento: Gestos

Recordo que neste advento estamos de esperanças, isto é temos seguido a nossa reflexão como se estivéssemos a viver uma gravidez. De facto, estamos grávidos de Cristo desde o nosso baptismo; trazemos em nós o próprio Jesus e o mundo anseia pelo seu nascimento definitivo e sofre as dores do parto ansiando essa alegria completa. O advento ensina-nos a aprofundar a esperança que nos faz senti-lO junto a nós, mas, ao mesmo tempo, ainda tão distante.
Nesta terceira semana, seguimos a mãe já na passagem do segundo trimestre da sua gravidez para o terceiro trimestre. Duas constantes ganham forma nesta fase: a vida que traz dentro de si manifesta-se de forma bem evidente (está praticamente toda formada e já se sente a mover-se e a dar pontapés) e os que se cruzam com a mãe já a reconhecem como uma grávida porque o volume da sua barriga assim o denuncia. Nesta fase, não só se torna pública a vida em gestação como também já são necessárias mais preparações para o grande dia.
Assim, para esta terceira semana de advento proponho como lema: Gestos porque o que pedem a João Baptista são acções (Que devemos fazer?) e a brevidade do nascimento pede-nos actos concretos.
O que o evangelho desta semana nos pede é que tornemos a nossa gravidez cristã, as raízes da nossa esperança e da nossa alegria bem visiveis no mundo. Não podemos ocultar nem silenciar esta vida que trazemos em nós cada vez mais viva e formada. E porque não podemos esconder a luz debaixo do alqueire nem calar a alegria que brota por O sentirmos dentro de nós, só podemos fazer a pergunta que faziam as pessoas que se deixavam tocar pelo profeta João, nas margens do Jordão: Que devemos fazer? Como mudar o mundo e como mudar a nossa incapacidade para a conversão? Como transformar a terra que caminha para a catástrofe? Como ignorar a nossa capacidade para uma justa redistribuição da riqueza? Como aceitar que ainda hoje existam tantos presépios humanos de miséria e abandono? Nós, os de esperanças não podemos achar que nada há a fazer, não desistimos nem caímos na impotência de dizer: o que podemos nós, tão pequenos, fazer. Não, nós os cristãos não vamos por aí. Pelo contrário perguntamos ao profeta radical: Que devemos fazer?
E se no evangelho a pergunta foi feita por três grupos diferentes (multidões, cobradores de impostos e soldados), proponho que nos sintamos esses três grupos porque, na verdade, eles estão vivos em nós: somos a multidão, mexemos com o dinheiro (publicanos) e temos sempre posições de poder (soldados). Assim, os que vivem de esperanças também têm um código ético, não porque está escrito em tábuas da lei, mas porque a vida que trazemos em nós depende desses gestos éticos para vingar, para iluminar, para se fazer ouvir e para se tornar uma realidade hoje no mundo e na história que são os nossos.
Esse código é simples: o que tem "duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma e quem tiver mantimentos faça o mesmo", isto é o cristão partilha, não acumula, sente que se tem a mais é para ter a oportunidade para dar, sabe que o que tem é tudo dom para se fazer de novo dom. Vós que mexeis no dinheiro: "não exijais nada além do que vos foi prescrito", isto é não procureis lucros fabulosos sempre à custa de perdas terríveis para os outros; não chantageeis, não exturcais, não exijais do dinheiro aquilo que ele não pode dar. Vós que exerceis algum poder: "não pratiqueis violência com ninguém nem denuncieis injustamente; e contentai-vos com o vosso soldo", isto é patrões, gerentes, chefes de produção, chefes de pessoal, etc. que a vossa conduta e as vossas palavras não humilhem, não firam, não sejam agressões; pais, professores, médicos, juízes, forças policiais, etc. procurai a verdade que ergue, a justiça que dignifica, a dignidade daqueles que estão nas vossas mãos com amor; colegas de turma e de faculdade, companheiros da noite e da festa, amigos de longa data nunca deixem que a presunção e as diferenças sociais, intelectuais e ideológicas provoquem superioridades e inferioridades.
Tal como a grávida espraia vida e não só sente os gestos dessa vida, como também tem gestos que preparam a libertação dessa vida, nós os crentes, para que a vida que trazemos em nós se torne credivel, visivel e santificadora, temos que ter gestos de dignificação do outro e de promoção do outro. O caminho da esperança é a justiça. O caminho para Jesus é a dignidade do outro.

Que devo fazer, Senhor?
Diante da grandeza problemática do mundo e da minha insignificância,
Diante da sedução do ter e da minha fragilidade,
Diante dos critérios do poder e do sucesso e da minha vontade de os seguir,
Diante da boa onda do superficial e da minha vontade em estar na moda,
Diante do ruído que distrai e da minha vontade em permanecer descomprometido,
Diante da azafama destes dias e da minha incapacidade em os organizar.
Que devo fazer, Senhor?

Senhor, tal como a mãe espera que tudo corra bem com o seu filho escondido no seu seio,
Assim eu me entrego a ti na esperança que sejas o oleiro dos meus dias
o guia dos meus passos
a luz nas minhas trevas
a Palavra no meio das palavras
a pá que limpa e joeira a eira dos meus dias atulhada de tanta coisa sem valor.
Senhor, ajuda-me a fazer o que devo para tu vivas e cresças no mundo.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O Regresso de Mafalda

Hoje, a uma semana do final da Cimeira de Copenhaga sobre as alterações climáticas, que como todas estas cimeiras parece ir dar em muito pouco, decidi regressar à minha amiga Mafalda. Aqui deixo mais duas tiras como sempre oportunas.
Bom fim-de-semana.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Uma Bela Peça de Teatro

Ontem, à noite, fui ao Teatro Nacional de S.João ver a peça de Gil Vicente, Breve Sumário História de Deus, encenada magistralmente por Nuno Carinhas. Naquela bela sala já vi grandes momentos de dramaturgia, mas nunca tinha assistido a uma encenação do novo director, Nuno Carinhas que, respeitando o texto original do grande dramaturgo português, fez vir ao de cima a profunda formação espiritual e teológica do seu autor, bem como a sua aguda visão sobre a humanidade e a sua história que é de salvação.
O espectáculo é magnífico e altamente recomendável. Diria que é imperdível, num tempo em que parece que a discussão sobre Deus se vai, progressivamente, impondo. Parece-me que para o seu encenador, a questão não é de menor importância nem um exclusivo de especuladores filosóficos, pelo contrário é uma questão onde se joga uma outra feita por Primo Levi, depois da experiência dos campos de concentração nazis: O que é o Homem? Não será por acaso que toda a peça se desenrola, numa espécie de dormitório judeu, naqueles campos da morte. Parece claro que o mundo é o local da história de Deus, da história do Homem. Da história de uma relação.
Gostaria de destacar diferentes momentos, mas vou terminar porque tenho escrito textos demasiado longos, mas não posso deixar de citar um dos textos que o encenador, em feliz hora, acrescentou à peça: um poema de Ruy Belo, penso que declamado pela personagem de Adão, que entrega a Cristo a cruz redentora de toda a espécie de homens. É uma texto de advento (tal como toda a peça que nos lê cristãmente o tempo como kairos, isto é tempo de salvação, de oportunidade, não de prisão cíclica nem de destino amaldiçoado), em que se reafirma este hoje que é onde Deus habita... connosco.

Amei a mulher amei a terra amei o mar
amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar
De muitas delas de resto falei
Não sei talvez eu me possa enganar
foram tantas as vezes que me enganei
mas por trás da mulher da terra e do mar
pareceu-me ver sempre outra coisa talvez o senhor
É esse o seu nome e nele não cabe o temor
Mas depois deste sonho sou obrigado a cantar:
Eis que o senhor está neste lugar
Porquê não sei talvez uma pequena haste balance
talvez sorria alguma criança
Terrível não é o homem sozinho na tarde
como noutro tempo de esplendor cantei
Terrível é este lugar
Terrível porquê? Não sei bem
Talvez porque o senhor pisa esta terra com os seus pés
(lembro-me até que mandou tirar as sandálias a moisés)
Levanto os dois braços aos céus
Aqui - mulher terra mar -
Aqui só pode ser a casa de deus.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Um texto para ler e meditar

Abeiro-me esta manhã daqui, para deixar ainda com as mãos trémulas um maravilhoso texto de um homem de fé, António Lobo Antunes, na verdadeira acepção da palavra. É um pouco longo. Se não tiverem tempo, leiam quando tiverem. E saboreiem as palavras. Que belo início de semana em advento.

De profundis

O meu pai tinha quatro irmãs mais novas e um irmão que morreu pequenino, de meningite, por volta da idade em que tive essa doença. Parece que comecei com muita febre e horas depois estava em coma. Inexplicavelmente sobrevivi. Há de certeza pessoas que, pelo que vou dizer, me acharão tonto, mas ninguém me tira da cabeça que Santo António me salvou. E lá me levaram, aos sete anos, a Pádua, tocar no túmulo do Santo e fazer a primeira comunhão. A minha relação com Deus tem sido sempre tumultuosa, cheia de desacordos e discussões: longos períodos em que me afasto, alturas em que me aproximo, amuos, quase insultos, discussões. Creio firmemente que, nos livros que escrevo, é Ele que guia a minha mão e não passo de um instrumento da Sua vontade. Quantas vezes me vem à cabeça aquele pequenino poema de Sebastião da Gama: a corda tensa que eu sou o Senhor Deus é quem a faz vibrar; ai linda longa melodia imensa: por mim os dedos passa Deus e então já sou apenas som e ninguém se lembra mais da corda tensa. É que não escrevo assim tão bem, trabalho sem plano e quase me limito a assistir ao que vai ficando no papel. O meu único mérito é fuçar o dia todo, até ser apenas som. Componho-os numa espécie de febre, no fundo de um abismo em que me perco, cego e surdo, não resultam nunca de uma deliberação mental, um propósito, um plano definido. Não concordo com Jean Daniel, quando afirma que a única desculpa de Deus é não existir: há alturas em que o sinto tão fortemente em mim, alturas em que o sei tão longe. O cancro, por exemplo: o Henrique, que é um homem de Fé, diz que me salvei porque nasci com um sistema imunitário fenomenal. Palavras dele. No meu modesto entender esse sistema imunitário fenomenal tem um nome, e esse nome entendeu que eu ainda era necessário aqui. Para escrever, julgo, porque fora dos livros nada valho: os meus defeitos e as minhas imperfeições são enormes. Tão inteligente para umas coisas e tão estúpido para outras, espantava-se a minha mãe. Aborrece-me admitir que é uma excelente definição do António. Nunca fui uma criatura estruturalmente má: na verdade não passo de um aselha, um parvo, incapaz de lidar com as coisas mais simples do quotidiano, um imbecil desamparado. Se os meus amigos não tomassem conta de mim com tanto desvelo não estava aqui a escrever isto, pedia esmolas nos semáforos. Regressando ao princípio o meu pai teve um irmão que morreu pequenino, de meningite. Contou-me certa vez uma coisa que não esqueci nunca: era criança e tinha ido com o pai buscar os exames do irmão. Meningite tuberculosa, sentença de morte. Vieram para casa com o meu avô a guiar o automóvel, e o meu pai, sentado ao lado do meu avô, via as lágrimas descerem pela cara impassível. Todos os dias, na esperança do filho se salvar, a minha avó ia a pé das portas de Benfica à capelinha da Senhora da Saúde, o que nessa época, e com o estado das ruas de Lisboa, exigia um esforço enorme. Depois dos meus avós morrerem as minhas tias encontraram toda a roupa do irmão guardada num armário: não foram capazes de se desfazer dela, não quiseram desfazer-se dela. Já nenhuma das pessoas de que falei se encontra neste mundo: os meus avós, o meu pai, as minhas tias. Sobro eu e, em certo sentido, enquanto cá estiver eles continuam. Para quem pensam que escreve o imbecil desamparado? Para as lágrimas de um homem pela agonia do filho, para uma mulher a caminhar diariamente quilómetros na esperança de que Deus o curasse. No jazigo dos meus avós lê-se

Ao nosso Antoninho

e, de vez quando, vou lá às escondidas. Podem pensar na minha cretinice, não me rala, sinto-me bem junto deles. Os meus livros são isso: as lágrimas daquele homem, os passos daquela mulher. No caso de se aproximarem mais das páginas é o que realmente verão, em lugar de palavras impressas. E talvez vejam também o cretino a espreitar, comovido, pelas grades da porta.

domingo, 6 de dezembro de 2009

2ª Semana de Advento: A Realidade

O Evangelho deste segundo domingo do Advento começa com uma aparentemente simples informação geográfica e política do início da pregação de João baptista. Nessa informação aparecem os nomes dos grandes daquele tempo: o imperador Tibério, em Roma, o seu procurador Pilatos, em Jerusalém, os filhos de Herodes, o grande, governadores do norte e do leste da Palestina e "amigos" do império e, claro, o poder religioso de Anás e Caifás, também ele comprometido com o império. Ora, é neste contexto histórico que Deus se manifesta. Deus não é um ser impávido e fora do tempo, distante e esquecido do homem. A sua encarnação é histórica e autêntica. Tem um espaço e um tempo. É no meio do homem.
Mas aquela informação diz-nos algo mais: Deus e a sua palavra não passam pelos poderosos nem pelos locais mais "in" da política, da economia e do social. Deus passa ao lado do centro do mundo, Deus não se revela nos grandes, dos que ofuscam o Seu brilho, o brilho da sua estrela, com os holofotes da fama, do domínio e do sucesso. Jesus aí não está nem vem. Assim, lemos que a palavra de Deus foi dirigida a um pobre e louco João, perdido, lá, longe de tudo, onde as riquezas só pesam e atrasam: no deserto distante. E aí, onde só vai quem se sente atraído pela Palavra, ouve-se uma voz: Preparai o caminho...
Proponho que regressemos ao lema deste advento inspirado na mulher grávida: Estamos de Esperanças.
Depois da "Surpresa" da semana passada, chegamos hoje à "Realidade". A realidade de que a Palavra de Deus hoje nos dá notícia é de que o Senhor não está nem em Washington, com Obama, nem em Pequim, Moscovo ou Bruxelas. Não aparece nem nos índices bolsistas de Wall Streett, Tóquio ou Londres. Muito menos faz parte das listas dos famosos de Hollywood ou dos rankings dos mais poderosos da Forbes. A palavra de Deus passa mais uma vez ao lado dos holofotes mediáticos e políticos, para se anichar, como o bebé em gestação no seio da sua mãe, na vida de cada um de nós pretendendo que lhe dediquemos todas as atenções. Tal como a mãe, depois da surpresa inicial, vai retomando as suas lides habituais, sem nunca deixar de estar atenta aos sinais do seu bebé em débil e periclitante crescimento e já preparando algumas coisas para o novo ser que vai sentido em si. Nós os cristãos, grávidos de Cristo, depois da surpresa de nos sabermos portadores de Jesus para o mundo e sentindo que a sua vida em nós é ainda tão pequena, em tão lenta formação e que nos causa ainda tantas náuseas a amarguras, vamos retomando a nossa vida, pressionados pela sociedade e pela crise, mas sempre atentos e em acção para não deixarmos que montes de discórdia se ergam, vales de desigualdade se aprofundem, caminhos tortuosos nos distraiam.
A esperança que temos vem desta realidade: Deus escolhe o mais simples, o mais incomum, o mais silencioso, o mais imponderável para vir e se tornar presente. Foi assim com João baptista, foi assim em Belém, é assim hoje. A grávida sente que traz em si o centro do mundo (mas, meu Deus, como é tão pequeno, indefeso e dependente de tanto)! e, por isso, tudo faz para que ele vingue, desenvolva e fortaleça. Deus escolhe-nos, não porque sejamos os melhores, mas, pelo contrário, porque somos o sítio mais improvável (meu Deus, quem sou eu para que me chames a ser teu!?) para Ele vingar, desenvolver e fortalecer a esperança dos homens num mundo novo. Nesta semana que a nossa "gravidez" seja profética e propiciadora de um novo Caminho. Não num sítio imaginário, mas na Realidade.

Preparai o caminho do Senhor e endireitai as suas veredas: Ajudai-me, Senhor, a ser um bom caminho, um atento guia e um fiel companheiro para todos os que comigo se cruzam.

Toda a ravina será preenchida: Ajudai-me, Senhor, a não fazer distinções entre amigos e pessoas por terem menos posses, por terem menos sucesso, por não partilharem os meus gostos que eu, por não viverem a mesma fé, por não terem um estilo de vida que eu considero o mais certo e digno. Ajuda-me a lutar contra as desigualdades.

Todo o monte e colina serão abatidos: Ajudai-me, Senhor, a deitar abaixo a arrogância, a ambição desmedida, a auto-suficiência que me faz ver os outros ou como rivais ou como objectos.

Os caminhos tortuosos ficarão direitos e os escabrosos tornar-se-ão planos: Ajudai-me, Senhor, a ser carinhosamente verdadeiro e a ser filho, amigo e trabalhador sem qualquer espécie de fingimento.



sábado, 5 de dezembro de 2009

Escolhas

Podem não acreditar, mas cheguei há pouco a casa. Tem sido assim toda a primeira semana de advento: muitas solicitações externas, já algumas compras natalícias, o trabalho a acumular-se na secretária e pouco espaço para partilhar os meus dias, nesta janela sobre o (meu) mundo. Alegra-me que vá cumprindo com as responsabilidades assumidas e que muito do meu tempo fora de casa tenha sido vivido em convívio familiar e amigo. E isso é o mais importante.
Deixo aqui uma notícia curiosa que me chegou pelo site do secretariado da pastoral da cultura. O MySpace pediu a várias personalidades para contribuírem com as suas «playlists» para o MySpace Music. Este novo site, que foi lançado no dia 3 de Dezembro no Reino Unido, faz «streaming» de músicas e vídeos, sendo totalmente financiado por publicidade. Na contribuição do Vaticano, compilada pelo Pe. Giulio Neroni, podem encontrar-se artistas tão variados como Mozart e os Muse. E aqui é que queria chegar. Sou há muitos anos uma apaixonado pelos Muse: rock(?) original, trabalhando diferentes influências e numa constante reinvenção da sua música. Fico abismado e orgulhoso que no Vaticano se admire música tão alternativa (?), mas tão significativa para tantos. Também por aqui se pode e deve dialogar com o mundo de hoje. A música escolhida pelo padre Giulio foi Uprising do último álbum que ainda não ouvi com atenção: Resistance.
Como estamos em tempo de esperança e de fortalecermos resistentemente o nosso acreditar em que é possível, juntos (Deus e o Homem), fazer nascer um novo mundo que, estando há mais de dois mil anos em gestação, nos chama agora, a nós cristãos da última hora, a um protagonismo fraterno e corajoso, para que cada vez mais se torne realidade. Por isso, deixo aqui Invincible dos Muse. Porque só juntos, Homem e Deus, somos invencíveis. Sim, parece que estou a abusar do sentido da letra da música, mas uma obra de arte é-o porque está sempre aberta a todas as leituras. Aqui fica a minha, nesta adoptada música de advento. Um bom domingo.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Advento

Proponho que neste advento coloquemos de lado aquela forma infantil de o descrever e de o propor como vivência: preparar o nascimento de Jesus, como se Ele já não tivesse nascido, como se Ele não caminhasse todos os dias ao nosso lado, como se Ele não fosse uma realidade hoje, no nosso mundo. O advento não é preparar o natal. Para isso, as tradições e a pressão social já nos empurram. Então, para que é o advento?
Para aprofundar diferentes dimensões da proposta de vida cristã que, por vezes, com o passar dos dias, se vão diluindo e dissolvendo. Este ano centro a minha reflexão na Esperança. Não aquela esperança resignada à espera de dias melhores. Não aquela esperança do jogador do euromilhões que acha que esta semana é que vai ser. Não aquela esperança da criança que anseia ser grande, do adulto que sonha sentir-se realizado ou do velho que pede um pouco mais de repouso. A esperança de que falo é a esperança cristã que é diferente porque é animada por uma certeza: já está em realização, isto é Jesus - a nossa esperança - já está no meio de nós, é connosco, habita em nós.
Por isso, a proposta sobre a esperança terá que ser a partir daquelas que esperam naquele e com aquele que já é uma realidade: as mães. Elas esperam algo que já é vida, que já está em crescimento, que já está em caminho no mundo, que já estabelece relações pessoais com os outros no mundo, que já é presença. Ora, é idêntica a esperança do cristão. Também nós esperamos activamente que Jesus se afirme na vida e no coração dos homens de uma forma plena, que nasça no mundo. Mas o que é certo é que Ele já está no meio do mundo, no coração dos homens. Ele já está em crescimento, em gestação no seio do anseios da humanidade que espera por tempos de paz, justiça, fraternidade, amor. O tempo que vivemos é um tempo grávido de Cristo e este advento ajuda-nos a perceber os movimentos de Deus na história e impele-nos a agir para que Deus se fortaleça e se torne realidade na nossa história. Para que nasça.
Assim, o meu lema deste advento é Andar de Esperança porque, tal como a grávida traz em si o seu filho vivo, cada cristão traz em si Jesus de Nazaré. E por isso, tem que estar atento à sua presença, ao seu crescimento dentro de si, aos seus movimentos, aos seus pontapés que avivam a vida de cada dia e que nos falam da sua presença viva. O cristão tem que estar atento à suas opções para não deixar que este menino que traz em si não desfaleça por falta de cuidados, atenção e carinho. O cristão tem que estar sempre alerta para ao primeiro sinal não deixar de acolher alegremente a vida como um dom.

Esta primeira semana de advento tem como lema: A Surpresa. A surpresa de Maria diante do anúncio incompreensível do anjo, diante do sentir-se grávida de Deus, diante da simples percepção de gerar em si a esperança do mundo. A mesma surpresa da mãe que recebe a notícia de que está grávida, notícia que tudo transforma e que a faz olhar a vida, o amanhecer e o entardecer com uma nova esperança. A surpresa que apela, tal como Jesus, à vigilância e à oração. À vigilância porque todos os cuidados são poucos diante de uma vida tão frágil e tão dependente dos nossos cuidados. E tudo sem nada vermos, sem nada tocarmos, apenas confiando que aquela pequena célula irá crescer imparavelmente até se tornar pessoa autónoma e livre. À oração porque quando nada podemos fazer, quando nada dominamos, quando toda a técnica e saber humanos aparecem impotentes diante do rumo que a natureza (e Deus?) decidem tomar, só nos resta colocarmo-nos nas mãos do Pai, como e com Maria ("Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra"). Orantes e vigilantes, erguemo-nos e levantamos a cabeça porque somos portadores da vida, do amor e nada poderá separar-nos do amor de Deus feito carne.
Nós os cristãos por mais pequena que seja esta vida que trazemos em nós, Jesus, o Salvador; por mais lento e imperceptível que seja o seu poder renovador e vital só podemos colocarmo-nos no caminho, o caminho que é Cristo, o caminho do homem para que o homem vença como irmão e filho, como a obra prima de Deus.

Senhor,
Sinto que em mim és muito pouco e quase imperceptível,
Sinto que não sou digno que te alojes no mais profundo do meu ser,
Sinto que não estou preparado para fazeres da minha vida uma vida contigo.
Mal te conheço, pouco te amo, menos confio.
As preocupações da vida tornam pesado o meu coração,
A embriaguês do sucesso e do ter ocupam as minhas forças,
A devassidão da riqueza e do meu egoísmo monopolizam os meus dias.

Mas mesmo assim, contra todas a expectativas, tu vieste e estás comigo.
Surpreendentemente dizes-me que me amas, que esperas muito do meu caminho
E que o mundo anseia que lhe mostre a Tua face, a face do Amor
Pelas minhas palavras que aprendi de ti
Pelos meus gestos que recebi de ti
Pelo meu amor que do teu lado aberto jorrou sobre a minha vida
Pelo meu espírito de esperança que do teu suspiro recebi.
E pedes-me que grite com voz de profeta: Deus habita no meu de nós, deixai-o existir.