Este dia em que milhares de pessoas enchem os cemitérios foi sempre para mim um dia muito estranho, principalmente quando comecei a trabalhar nas paróquias por onde passei. Até então era uma dia de missa como o domingo, mas em que o cemitério não era um espaço que a nossa família, mais próxima ou mais alargada, frequentasse, mesmo depois da morte dos meus avós paternos e maternos. Não se pense que já alimentavamos o actual tabu da morte, pois quando os meus avós faleceram as crianças da casa (eu, as minhas irmãs e os meus primos, e depois o meu irmão) lá estivemos na câmara ardente, na missa de corpo presente, no beijo de despedida ao avô ou à avó, na procissão até à Igreja (os meus avós paternos tiveram em câmara ardente na sua casa) e junto ao jazigo onde foram sepultados. Nunca nos esconderam a verdade da vida que é a morte, nunca nos "douraram a pílula" sobre a violência , a dor e a esperança que a morte encerra. E quando o primeiro avô faleceu eu tinha seis anos, a João quatro e a Inês dois anos... Não me esqueço que quando a minha mãe recebeu a notícia de que o meu avô paterno tinha falecido (o primeiro a partir), chamou-nos aos três e de joelhos rezamos ao Sagrado Coração de Jesus: Deus sabe como rezei tão convictamente de que estava a ser escutado e de acreditar que o avô já estava junto do Jesus. Talvez por isso e porque nascemos e crescemos ancorados a uma profunda, sólida e provada confiança na ressurreição de Jesus sempre olhamos este dia como uma celebração da vida e não como uma corrida desenfreada aos cemitérios, lugares de morte e que nada acrescentam à nossa mais profunda convicção: que aqueles que partiram e nos deixaram um profundo sentimento de solidão estão vivos junto do Pai, tal como Jesus, e em íntima união connosco.
Neste tempo em que de todos se esconde a morte, em que se evita que uma criança presencie a morte, em que se chamam psicólogos para aliviar a dor da morte, em que se morre longe da sua casa e dos seus (por vezes, na mais desumana das solidões), em que sempre que se fala de tal, lá se escuta: ah não, por favor falemos de outra coisa. Que horror! Ora, a verdade é que a morte confronta o homem com o nada, o vazio, a questão do sentido. Confronta o homem com a verdade. Na verdade, a morte não mente. Quem mente são os tempos que vivemos, cheios de avanços técnicos, cheios de conhecimento, cheios de poder, mas que têm medo de enfrentar a verdade e enganam-se e enganam. Se a morte voltasse serenamente (não para aterrorizar, mas para construir a esperança) ao pensamento do homem, ela levar-nos-ia à conversão e à transformação do mundo. Assim, como estamos, apenas queremos viver o mais possível, acumular o máximo, ter as maiores e mais originais experiências, mas esquecemos o outro de tão ocupados que estamos em viver a nossa vidinha individualista e fechada sobre si própria. E esquecemos de pensar o sentido de tudo isto.
Por isso, hoje não fui nem vou a nenhum cemitério, mas vou receber na minha casa a minha família para celebrar a vida, recordar os que amamos e que nos amam e que já não partilham o caminho connosco, e beberemos um bom copo de vinho, celebrativo e meditativo, porque sabemos que a morte é dura e dolorosa, mas acreditamos que é apenas a curva do caminho em que deixamos de ver os que vão à nossa frente e em que, os que nos seguem, nos deixam de enxergar. Não, não vou ao cemitério porque lá não está ninguém. Aqui, sentado diante do meu computador, sinto o olhar silencioso do meu avô Guilhermino, o sorriso contagiante da minha avó Rosa, a bondade do meu avô Marques, a fé sofrida da minha avó Glória, a admiração que o meu tio António me devotava. Todos eles estão vivos e rezam por mim, por nós. A eles, os santos de Deus que hoje celebramos, o meu obrigado...
domingo, 1 de novembro de 2009
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Que bonita reflexão...concordo consigo.Hoje esconde se a morte das crianças e depois não são capazes de enfrentar a dura realidade do dia a dia.Uma boa semana.Bjs
Mais uma vez fiquei satisfeita com a reflexão que propões.
É verdade que nos dias de hoje a morte é um tabu, os pais escondem essa realidade.
Sempre que existe uma morte inventam-se histórias, não se leva as crianças ao velório porque elas ficam traumatizadas.
Eu devia ter uns 5 anos quando estava aos pés da cama onde uma senhora estava a morrer, depois de um suspiro a vida terrena dela termina na minha presença e eu não tive nenhuma reacção de terror. Ainda não tinha idade para entender que a vida dessas pessoas passava a ser vivida junto do Pai.
O facto de irmos ao cemitério foi uma tradição que a igreja cultivou ao longo destes anos.
Espero que seja possível transmitir às pessoas que não devemos "festejar" a morte, mas sim a vida, a vida que temos junto do Pai!
Enviar um comentário