domingo, 18 de julho de 2010

XVI Domingo do Tempo Comum

Que texto (Lc 10, 38-42) tão oportuno o de este domingo para quem, como eu, andou tão atarefado e ocupado. Que texto tão oportuno em tempo de crise social e económica tão profunda que já todos percebemos que temos que trabalhar muito mais e receber bem menos para nos aguentarmos à tona.
No entanto, Jesus recorda-nos que a questão não está no tempo que nos falta, no excesso de cargas que nos carrega a vida, nas preocupações que nos apoquentam retirando-nos serenidade, confiança e amizade. A questão que está na raiz de tudo isso é outra.
Coloquemos os olhos sobre a atarefada Marta: ela é a dona da casa ("uma mulher chamada Marta recebeu-o em sua casa"); andava distraída, absorta (melhor que o "atarefava-se" da tradução litúrgica) com o muito serviço; depois repreende Jesus ("não te importas") e dá-lhe ordens ("diz-lhe que venha ajudar-me"), sempre com um olhar enviesado sobre a irmã e o mestre que acolhera em sua casa.
Marta é o sinal de muitos de nós descentrados do essencial, desconcentrados de que estamos com..., distraídos com as atitudes dos outros, às voltas, como baratas tontas, sustentando um sistema iníquo que diz que fomos feitos para trabalhar e não para viver, esquecendo que não somos donos de nada nem de ninguém, mas hospedes da vida, da nossa vida e da vida dos outros, pessoas que devem permanentemente estar agradecidas a Deus e aos irmãos por aceitarem a nossa individualidade, por amarem as nossas fraquezas, por aceitarem partilhar os seus dias, os seus gestos, as suas palavras, a sua companhia, o seu amor connosco.
Marta não escolheu ("Maria escolheu a melhor parte"). Sim, não parou para olhar em volta, para perceber o quanto recebe (muito mais do que o que dá), não travou a tempo os seus gestos e as suas palavras para acolher e por isso virou-se contra aqueles que mais a amavam. Como o fazemos tantas vezes! Não se revoltou com os sistemas que lhe impõem acção e não reflexão, que lhe impõem ânsia de tudo ter e experimentar em vez de serenidade de muito acolher, que lhe sugam a generosidade e a capacidade de sacrifício ingredientes essenciais para o amor.
Parafraseando uma anedota judia (aquele rabino anda tão ocupado com as coisas de Deus que até se esquece que Ele existe), existem tantos pais procupados com o futuro dos filhos que até se esquecem que eles existem; existem tantos casais preocupados com as experiências novas que até se esquecem de experimentar a novidade absoluta e diária do outro; existem tantos empresários preocupados com os lucros que até se esquecem que o lucro acontece com os outros que produzem, consomem e se alimentam; existem tantos trabalhadores preocupados com o seu futuro que até se esquecem que o futuro é uma construção com os outros; existem tantos jovens em busca de liberdade que até se esquecem que ela está ao alcance da sua capacidade de conquista responsável e dialogada; existe tanta Igreja preocupada com a grandeza de Deus que se esquece que a glória de Deus é o homem.
Jesus ensina-nos a escolher a cada hora, em cada dia e diante de cada homem a melhor parte que quase nunca é a minha.

3 comentários:

vivalda disse...

Olá amigo! Fico feliz por voltares a ter um pouco de tempo para regressar a este espaço. Hoje ao ouvir o evangelho recordei uma conversa que tivemos, em que tu me disseste o mesmo que Jesus disse a Marta! Eu na maior parte da minha vida continuo a ser "Marta" preocupando-me com muitas outras coisas e não vivendo o essencial! Mas deixo também aqui um desabafo que foi o facto de ter ido à eucarista e o sacerdote ter feito uma homilia enorme, mas sem conteudo. O que escreves neste espaço obriga-me a reflectir, pensar e sentir que tenho de procurar ser como Maria! Obrigada.

Fernando Mota disse...

Se conseguir fazer pensar uma só pessoas, está atingido o objectivo deste espaço dominical. Um abraço e obrigado pelas tuas palavras.

Fernando Mota disse...

A questão que colocas é antiga: compaginar a liberdade do homem com a omnipotência de Deus; conjugar a natureza amorosa do Deus cristão com a maldade, a dureza de coração do homem: se Deus é bom porque nos criou capazes do mal? Se Deus conhece tudo onde está a nossa liberdade? E se conhece tudo, sabe que vamos fazer o mal e não nos impede. Então é bom? Enfim, ou é bom e não é omnipotente, ou é omnipotente mas não é bom.
Poderíamos ficar aqui eternamente. O problema destas reflexões é colocarem no centro da discussão um Deus que não é cristão, mas simplesmente conceptual. Com este podemos fazer os jogos mentais que quisermos. Podemos colocá-lo em todas as proposições. Pode ser objecto de tentativas de provas ou de refutações: basta ler a história da filosofia ou os recentes debates entre os neoateus e os cientistas crentes. Podemos ir por aí. Mas não é esse o Deus que me fascina. Um Deus provado cientificamente seria uma seca. Seria como que dizer que o meu amor por alguém era somente um conjunto de resultados nervosos ou de produções químicas. O Deus em que acredito é tão misterioso como tu me és a mim ou como eu o sou para ti. Inalcançável em todas as suas dimensões, como eu nunca te alcançarei nem tu a mim. Por isso, é que é o Deus de Jesus Cristo. Uma pessoa com quem me relaciono e que não abarco nem prendo.
Em relação ao livro de Génesis, como bem sabes o que ali temos é um género literário poético-mítico que não diz como as coisas foram, mas apenas reflecte sobre algumas dimensões da vida a que o judeu do século X a.c. lançava as sua questões. Como é evidente não houve nenhuma árvore, nem jardim, nem um casal de humanos.
Para mim, aquelas questões do início deste comentário só podem ser respondidas a partir de Jesus: o poder de Deus termina onde começa o nosso; a sua relação connosco é de proposta; a sua proximidade é de companhia e não de juízo; a cruz de Jesus e a manhã de Páscoa são a prova de que o braço de Deus só chega onde o do homem não pode chegar: à morte, não ao matar; à vida, não a uma vida no tempo. Sinceramente, às vezes digo a brincar, não que Deus errou ao criar, mas não terá errado mesmo ao dar a vida pela humanidade?
Caro Alírio isto vai longo e quase incompreensível, mas termino dizendo-te que nem o Deus dos filósofos nem o das provas pode ser amado. E o amor é a maior racionalidade de que somos capazes. Agora falta discutir de que amor estarei a falar. Fica para outro dia. Uma abraço.